Cresci em um lar cheio de mulheres prendadas, que faziam crochê e tricô enquanto assistiam as novelas. Eu tive um lindo vestido azul de crochê, que minha tia Maura fez para mim, até hoje gosto de olhar a foto em que estou usando-o, e fico pensando no carinho que a motivou a escolher a cor e pacientemente, entrelaçar cada ponto tão lindamente!
Quando as mulheres da casa decidiam fazer um artesanato em especial, era um acontecimento! Elas compravam lãs e linhas para pôr em prática o que haviam idealizado. Mas certa vez, minha tia começou a fazer um crochê com os restos das lãs que já tinha. Iniciou com um florzinha branca, a cercou de azul e novamente branco, formando um quadradinho, do tamanho da palma da mão. Curiosa, eu perguntei o que ela estava fazendo, Seria uma blusa? Um cachecol? Mas para minha surpresa, ela me disse:
– Ainda não sei. Me deu vontade de fazer.
Na vida, sempre pensamos na importância do planejamento, e de fato, planejar é importante para sabermos aonde queremos chegar, para assim, termos autonomia diante da própria vida e história. Mas o engraçado, é que já não vejo nos guarda-roupas da família, as blusas, saias, vestidos e cachecóis que foram tão planejados e bem executados.
Mas até a última vez que estive na casa da minha tia, lá estava em cima da cama, a linda colcha de lã azul e branca, formada por diversos quadradinhos com florzinhas, feitos um a um, entrelaçados um ao outro, resistindo por mais de 30 anos. Embora eu não entenda de crochê, não me lembro de ter visto em outro lugar, um ponto com florzinhas tão belas e delicadas. E aquela colcha foi resultado de uma simples “vontade de fazer”, sem saber onde ia dar.
Muitas vezes nos sentimos como uma Alice nos país das Maravilhas (Lewis Carrol, 2021), quando chegamos a procurar informações até com um gato risonho que nos diz:
– Se você não sabe para onde deseja chegar, qualquer caminho serve.
E não saber para onde se quer ir, pode nos levar para uma inércia diante da vida, para uma passividade e vulnerabilidade em que nos deixamos levar por situações que não escolhemos. Contudo, na vida nem sempre temos as repostas de onde queremos chegar, pois não conhecemos todas as possibilidades! Mas perceber as coisas que nos atraem, aquelas que gostamos de fazer, pode nos dar uma ideia de onde desejamos chegar, mesmo que a ideia ainda não seja muito clara.
Quando somos motivados a fazer o que estamos com vontade, sempre vamos um pouco além de onde acreditávamos que poderíamos chegar, é só seguir um passo de cada vez. Gosto de lembrar do personagem homônimo do filme Forrest Gump (ROTH, 1994), quando foi novamente abandonado pela sua amada Jenny, sua vontade era apenas correr:
“Corri até o fim da estrada, e quando cheguei lá resolvi atravessar a cidade. E quando cheguei lá, resolvi atravessar o condado de Greenbow. E já que tinha ido até lá resolvi atravessar o Estado do Alabama correndo. E foi o que eu fiz. Corri até sair do Alabama. Sem nenhum motivo, e segui em frente. Corri até chegar no oceano. E quando cheguei lá, já que tinha ido tão longe resolvi voltar e continuar. E ao chegar no outro oceano, já que tinha ido tão longe resolvi dar meia volta e continuar correndo. Quando eu ficava cansado, dormia. Quando tinha fome, comia e quando precisava ir… Bom, sabe… eu ia.”
Quando analiso minha própria trajetória, me admiro de eu estar chegando aonde jamais imaginei que chegaria. Com tantas dificuldades de aprendizagem e atenção, estudar era um suplício. E agora, terminei o mestrado e me sinto capaz o suficiente para tentar o doutorado. Sempre gostei de escrever e hoje olho minhas publicações e sinto uma realização incrível! Sinto que estou exatamente onde eu deveria estar e nunca imaginei que me sentiria tão feliz e realizada aos 40 anos.
Leia também: O comportamento guiado pelos princípios de consciência moral
Até meus 30 anos, minha vida parecia uma sucessão de más escolhas. Por muitos anos senti que minha existência era como um emaranhado de fios soltos, que serviriam apenas para ocupar espaço ou estofar e afofar alguma coisa. Parecia ser uma tarefa impossível, separar os fios bagunçados de minha vida, criar novelos separados, para enfim, começar a tricotar alguma coisa. Parecia que eu havia feito meros quadradinhos aleatórios que não combinariam com nada.
Meu currículo pode até parecer confuso para alguns e até para mim, já me pareceu um caos. Cheguei a me arrepender de ter feito Teologia, pois fui movida por paixão e não pelo fim prático de ter uma profissão. De cada uma das três faculdades que fiz, imaginei caminhos diferentes do que realmente aconteceu, fiz filosofia para ser filósofa e não imaginava que seria tutora e professora no ensino médio. Mais do que isso, eu não fazia ideia que ia amar tanto a educação e minhas profissões! Fico pensando em como Deus ouviu quando eu pedia para Ele escrever minha vida, como sendo um livro.
Há alguns anos, jamais eu poderia cogitar que escolheria a área de Filosofia da Educação e pesquisaria sobre Paulo Freire, dentro do campo da ética e moral. E finalmente, todas as minhas formações me fizeram sentido! Eu não compreenderia os termos cristãos de Freire se não tivesse feito Teologia, nem sua ética e prática de amorosidade na educação, se eu não tivesse vivido as coisas que vivi, e não tivesse feito Filosofia e Pedagogia. Todas as minhas vivências e motivações me fazem sentido agora, como uma linda colcha de quadradinhos, que foram feitos um a um.
Somos bombardeados por padrões sociais e exigências de que todos construam suas vidas da mesma maneira. Mas alguns vão traçar metas, outros só vão descobrir o que fazer após os 40, alguns vão viver um romance desde a juventude, outros vão construir um relacionamento de amor bem mais tarde, e outros, jamais encontrarão um parceiro ou uma parceira. Alguns vão ter filhos, outros não, alguns gostam de casa cheia e barulhenta, outros preferem uma casa silenciosa e organizada que é um refúgio ao qual passa o dia esperando voltar.
Mas que todos possamos encontrar a realização pessoal e a felicidade, ao perceber as próprias vontades e o que elas querem nos dizer. Que possamos ser como um Forrest Gump que percebe que se chegamos até aqui, podemos correr sempre um pouco a mais, até chegar bem longe. Que possamos ser como uma tia crocheteira, que mesmo sem ter noção do que ia fazer, fez quadradinhos e mais quadradinhos até formar uma colcha que permaneceu por décadas, enfeitando e aquecendo suas noites.
Obras citadas:
CARROLL, Lewis. Alice nos país das maravilhas. Tradução: André Cristi. São Paulo: Mojo Comunicações, 2019.
ROTH, Eric (roteiro), et. al. Forrest Gump: O contador de histórias. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1994.